HENRY CORBIN

(1903-1978)

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HENRY CORBIN E O GNOSTICISMO ISLÂMICO
Henry Corbin dedicou sua vida a trazer e a mostrar ao Ocidente a filosofia islâmica xiita, principalmente a que se desenvolveu no Irã. Tendo trabalhado no Instituto Francês de Arqueologia, em Istanbul, Turquia; na Universidade de Sorbonne, França, e também na Universidade de Teerã, reuniu e publicou diversos textos árabes e persas antigos e inéditos até então, promovendo uma releitura da filosofia islâmica, que havia sido desconsiderada pelo Ocidente desde a morte de Averróis, no séc. XII.

Ao apresentar um panorama da filosofia islâmica, Corbin indicou as diversas correntes de pensamento e escreveu biografias de vários de seus principais personagens. Além disso, tratou com profundidade de temas importantes para o entendimento da filosofia xiita, como o papel dos profetas e o dos imãs; o tawil, a exegese esotérica do Corão; a imaginação ativa; o mundo das imagens arquetípicas, chamado Malakut ou mundus imaginalis; o Miraj e as jornadas místicas relatadas por Avicena, Attar e Sohravardi; a ideia central por trás da busca pelo Imã Oculto.

Especificamente sobre o xiismo, Corbin tratou do xiismo dos 12 imãs e do ismailismo. Do xiismo dos 12 imãs, apresentou as Escolas de Isfahan e Shaykhie, indicando seus expoentes e traduzindo obras inteiras ou pequenos tratados. Junto com Sayyed Ashtiyani, professor da Universidade de Mashhad, no Irã, que Corbin chama de “Molla Sadra redivivus”, lançou A Filosofia Iraniana nos séculos XVII e XVIII, uma antologia de filósofos da Escola de Isfahan e seus continuadores. De Ahmad Asa’i, da Escola Shaykhie, Corbin expôs o ensinamento sobre a alquimia, aproximando-o ao de Proclo, filósofo neoplatônico grego.

O ismailismo, em sua vertente fatimida e nizari, foi amplamente tratado e traduzido por ele. Em Tempo Cíclico e Gnose Ismailita, Corbin esclareceu a visão dos ciclos de tempo, fazendo um paralelo com a visão zoroastriana, e tratou da figura do Imã no contexto da ressurreição, ressaltando que o fim dos tempos descrito por essa tradição não se refere a uma catástrofe final na história, mas a um evento da alma. Além disso, Corbin traduziu O Desvelamento das Coisas Ocultas e O Livro das Fontes, de Abu Yakub Sejestani (†972). Em sua Trilogia Ismailita, apresentou textos de Mahmud Shabestari, ismailita nizari de Alamut, no Irã, e de Ali ibn al-Walid.

Para maior conhecimento do sufismo, Corbin tratou da obra de Ibn Arabi, comentou a obra do iraniano Ruzbehan Baqli Shirazi (1128-1209) e de seus seguidores, chamados por Corbin de “fiéis do amor”. As ideias de Ruzbehan, Najmoddin Kobra, Najm Razi e Semnani são apresentadas em O Homem de Luz no Sufismo Iraniano, que enfoca o guia de luz, a natureza da alma, o mundo das cores e sua correspondência na fisiologia sutil do homem.

Em 1939, Corbin lançou Suhrawardi d’Alep, Fundador da Doutrina Iluminativa, que trata da vida desse personagem, de seus tratados metafísicos e do tema do tawid, o testemunho do Uno obtido através do fana, a cessação dos impedimentos causados pelo eu. Além disso, Corbin dedicou o segundo volume da coleção Sobre o Islã Iraniano às ideias e à obra de Sohravardi e dos chamados “Platônicos da Pérsia”; traduziu O Livro da Sabedoria Oriental, com os comentários Qotboddin Shirazi e Molla Sadra Shirazi, da Escola de Isfahan, e 15 tratados e relatos místicos, reunidos em O Arcanjo Tingido de Púrpura.

O tema da cavalaria espiritual (fotowwat), que Corbin aproximou dos cavaleiros templários e da tradição do Graal, é abordado em O Homem e seu Anjo. Nessa obra, o autor tratou também do duplo celeste, chamado pela tradição hermética de “natureza perfeita”, e dos rituais de iniciação no hermetismo no Irã e na tradição ismailita.

Sobre alquimia, além de apresentar as ideias de Ahmad Asa’i, Corbin traduziu O Livro das Sete Estátuas, de Apolônio de Tiana, e O Livro do Glorioso, obra do alquimista Jabir ibn Hayyan, conhecido no Ocidente como Geber. Em Avicena e o Relato Visionário, Corbin abordou a obra desse filósofo persa e traduziu seus relatos místicos.

O GNOSTICISMO ISLÂMICO

 Henry Corbin dedicou sua vida a estudar e a trazer para o Ocidente, por meio de sua obra e de suas palestras, a tradição islâmica xiita, principalmente mas não somente a iraniana. Ao longo de suas obras, percebe-se como tema central a trajetória da gnosis desde os primórdios do islamismo, com o Profeta Mohammad [1] e seu genro Ali ibin Abu Talib, até o séc. XX.

O PROFETA MOHHAMMAD E O IMÃ ALI IBIN ABU TALIB
O Profeta Mohammad (570-632) foi ensinado por um monge nestoriano chamado Sergius, e seu ensinamento apresenta influências de sabeísmo, nestorianismo, maniqueísmo e judaísmo [2]. Na Arábia pré-islâmica havia a presença de seguidores de Nestor, um cristão que havia sido expatriado de sua terra por ter sido considerado herético. Os nestorianos traduziam e divulgavam textos da filosofia grega e também da tradição maniqueia. O Profeta também teve contato com sabeus, ou mandeanos, seguidores de João Batista que se refugiaram em Harran (Sul da Turquia) e no Iraque. Entre esses sabeus de Harran havia grande influência de ideias gnósticas e herméticas [3].

A partir dos 40 anos, começou a ter experiências místicas, como o Miraj, a ascensão espiritual. Apoiado por seus familiares dentre eles, sua esposa Khadija, sua filha Fátima e seu genro Ali ibin Abu Talib começou a ensinar.

Mohammad é considerado o último profeta, ou o “selo da profecia”, do chamado ciclo da profecia  (nobowwat), composto por sete profetas: Adão, Noé, Abraão, Davi (algumas escolas o omitem), Moisés, Jesus e Mohammad.

A tradição islâmica baseia-se no Corão, nas sunnas e nos hadiths. O Corão reúne ensinamentos dados sob inspiração, que seus discípulos anotavam. Posteriormente, esses ensinamentos foram reunidos e organizados em 114 suras, ou capítulos. O Corão apresenta influência de evangelhos apócrifos, como o Evangelho de Tomé, o Protoevangelho de Tiago, Evangelho de Nicodemos, Narrativa de José de Arimateia [4]. Da mesma forma, apócrifos que relatam a história de Maria. O segundo livro considerado autêntico é o As-Sahih (O Livro das Visões), onde se encontram as narrativas sobre a vida do profeta e seus preceitos, os hadiths. Além disso, existem as sunnas, palavras, práticas e hábitos de vida do profeta.

Um hadith afirma: O Corão tem uma aparência exterior (zahir) e uma profundidade oculta, um sentido externo e outro interno (batin); por sua vez, este sentido interno encerra outro sentido interno (…), assim sucessivamente, até sete sentidos internos [5]. Contudo, como Henry Corbin explana em sua Histoire de la Philosophie Islamique, a capacidade de compreender esses sentidos internos é condicionada pelo modo de ser daquele que os compreende [6]. A cada um desses níveis de significação corresponde um modo de ser, um estado interior, uma hierarquia espiritual que possibilita que seja feita a hermenêutica (tawil) do texto.

Sob esse pressuposto estabelece-se a shia (grupo de seguidores de Ali), que defende que, dentre os sucessores do Profeta Mohammad, aquele que foi investido da capacidade de realizar a exegese espiritual interior, de reconduzir a mensagem do Profeta ao seu sentido verdadeiro, e não permanecer apenas no literal, aquele que foi seu verdadeiro herdeiro espiritual, foi seu genro Ali ibin Abu Talib (599-661)[7], o primeiro Imã

Ali ibin Abu Talib inaugura, então, o ciclo da iniciação espiritual no Islã, a walayat (amizade com Allah), que está a cargo dos walis, os amigos de Allah, ou Imãs. A função dos Imãs é iniciar o discípulo na hermenêutica dos vários sentidos internos que jazem por trás da shariat, até seu sentido último e verdadeiro, a haqiqat, o sentido das origens da existência humana e de seu destino futuro. Assim, a profetologia encontra seu complemento necessário na imamologia.

A partir de Ali, a linhagem dos Imãs continua com seus dois filhos, Hussein e Hassan, e segue adiante com seus sucessores, até que, com a morte do VI Imã, Jafar al-Sadiq, o xiismo bifurca-se em dois ramos: o xiismo dos 12 Imãs e o xiismo ismailita. O ramo ismailita é formado por aqueles que se agruparam em torno de Ismail, filho mais velho de Sadiq que havia sido investido no Imamato por seu pai, mas teve uma morte precoce, e de Abul Khattab, um mestre de Ismail. Outros uniram-se a outro filho do Imã Jafar, também investido, Musa al-Kazim, aceitando-o como VII Imã. Esta sequência de Imãs continuou até o XII Imã, Mohammad al-Mahdi, misteriosamente desaparecido, e esta linhagem ficou conhecida como a xiismo dos 12 Imãs.

O XIISMO DOS DOZE IMÃS
O xiismo dos 12 Imãs está baseado na sequência dos seguintes imãs: I – Ali ibn Abi Talib (†661); II – al-Hasan al-Mojtaba (†669); III – al-Hosayn Sayyed al-Shohada (†680); IV – Ali Zaynol- Abidin (†714); V – Mohammad Bagir (†733); VI – Jafar al-Sadiq (†765); VII – Musa al-Kazim (†799); VIII – Ali Reza (†818); IX – Mohammad Javad al-Taqi (†835); X – Ali al-Naqi (†868); XI – al-Hasan al-Askari (†874); XII – Mohammad al-Mahdi, al-Qaim, al-Hojjat.

O XII Imã é chamado o Imã oculto (al-mahdi), o Imã esperado, o Imã da Ressurreição (al-Qaim), o testemunho ou prova (al-Hojjat). Há duas fases de ocultação: a menor e a maior. A menor inicia-se com seu desaparecimento, enquanto criança, por ocasião da morte de seu pai, o XI Imã Hasan Askari, e dura 70 anos. Nesse período, o Imã oculto teve, sucessivamente, quatro representantes (naib), por meio dos quais seus seguidores podiam se comunicar com ele. A grande ocultação teve início quando o seu quarto e último representante, Ali Samarri, recebeu a ordem de não eleger sucessor. A grande ocultação findará com o reaparecimento do Imã, quando ele se revelará, desvelando todos os sentidos ocultos de todas as profecias, estabelecendo um período de harmonia e justiça.

Segundo Corbin, o aparecimento do Imã depende do modo de ser de cada um, que lhe permitirá realizar o tawil, a exegese espiritual, que compreenderá a Unidade divina. A busca do Imã representava para um xiita o que a busca do Graal representava para os cavaleiros místicos do Ocidente.

O xiismo dos 12 imãs torna-se religião oficial do Irã a partir do séc. XVI. Duas escolas importantes foram a Escola de Isfahan, de Mir Damad, Molla Sadra e outros, e a Escola Shaykhi, de Ahmad Asa’i e outros.

O ISMAILISMO
O Ismailismo[8] é a corrente do xiismo que surge com a sucessão ao VI Imã, Jafar al-Sadiq, no séc. VIII. Sadiq havia investido seu filho mais velho, Ismail, como VII Imã, contudo, este morre precocemente, e o seu pai investe seu irmão mais novo, Musa al-Kazim. O grupo diretamente ligado a Ismail, liderado por Abul Khattab, uma espécie de pai espiritual, organiza um movimento especificamente batini, ou seja, esotérico e gnóstico [9].

Abul Khattab oficiava um “ritual do cálice”, considerado por Corbin uma “liturgia xiita do Graal”. Khattab ensinava ideias gnósticas e cabalistas [10] e atuou em Kufa, no Iraque. Seus ensinamentos são encontrados no mais antigo tratado ismailita conhecido: A Mãe do Livro (Risala-ye Omm al-Kitab), redigido em persa. Por ordem do governante da região, Khattab foi capturado e crucificado; e seus discípulos, massacrados. Os sobreviventes afirmaram sua lealdade a Ismail, designando o khattabismo como ismailismo.

 
O ISMAILISMO FATIMIDA
No séc. X, foi fundado o ismailismo fatimida, que se iniciou no norte da África e estabeleceu um califado no Egito, cuja capital passou a ser a então nomeada cidade do Cairo (al-Qahira).

O VI Imã-Califa foi al-Hakim, que governou de 996 a 1021. Al-Hakim fundou a Casa do Conhecimento (Dar al-‘Ilm), uma espécie de universidade onde se estudavam o Corão e os hadith, filosofia, álgebra, jurisprudência, lógica, gramática, medicina, astronomia. A Casa abrigava também uma vasta biblioteca aberta ao público, que chegou a 400 mil volumes. Era frequentada por estudiosos de diferentes religiões.

Havia uma grande preocupação com a organização e as atividades dos centros de propagação do ensinamento ismailita, chamados dawas, e com a ampla e rigorosa formação dos dais, os propagadores. Um importante dai foi o iraniano Hamid al-Kirmani († c.1017).

Nessa época viveu Ibn Sina (980-1037), que no Ocidente é conhecido sob a forma latina Avicena.

Escreveu três relatos místicos: Relato de Hayy ibn Yaqzan, Relato do Pássaro, e Salaman e Absal, que têm como tema a viagem em direção a um Oriente místico, “não encontrável em nossos mapas”. Designava sua filosofia de “filosofia oriental” (hikmat mashriqiya).

No Ocidente, a obra de Averróis foi priorizada em detrimento da obra de Avicena, enquanto, no Oriente Médio, ocorreu o contrário. Posteriormente, um continuador de Avicena foi Sohravardi, que assumiu o projeto da “filosofia oriental” e o aprofundou. O avicenismo sobreviveu no Ocidente com Alberto, o Grande, e seu discípulo Ulrich de Strasbourg e entre os místicos da Renânia, no Oeste da Alemanha).

 
OS DRUSOS
Os drusos são os seguidores de um movimento iniciado, no Líbano e na Síria, por al-Darazi, um dos dais (propagadores) do ismailismo fatimida. O mais importante dos Imãs desse movimento foi Hamsa ibn ‘Ali, considerado seu verdadeiro fundador. Seu ensinamento enfatizava a devoção ao Uno e sua presença nos seres. Os drusos chamam a si mesmos de “unitários”. O ismailismo druso foi influenciado pelo neoplatonismo, zoroastrismo, maniqueísmo e sabeísmo (mandeanismo) [11].

O braço direito e sucessor de Hamsa foi Boha al-Din al-Muqtana. Boha al-Din propagava a tradição por meio de cartas, que enviou a diversos lugares, como Índia e Constantinopla. Segundo Helena Blavatsky, Boha al-Din escreveu as instruções de Hamsa e as confiou aos cuidados de uns poucos iniciados, os chamados uqqals. Seus ensinamentos mais internos são transmitidos sob sigilo.

 
O ISMAILISMO NIZARI
A linhagem dos ismailitas nizaris foi iniciada por Mansur Nizar (1045-1095). Os nizaris atuaram na Síria e no Irã. No norte do Irã, estabeleceram-se em Alamut, liderados por Hasan-i-Sabbah. Na Síria, seu líder era Rashid al-Din Sinan. Sinan e seus seguidores serviram de base para as lendas criadas pelos cruzados, que os chamavam de “Velho da Montanha” e “assassinos”. Nesse período, os Imãs eram obrigados a ocultar sua identidade. Alamut foi destruída quando houve a invasão mongol, em 1256, e os ismailitas nizaris passaram a assumir a identidade de sufis. Sem se afiliarem formalmente a alguma confraria (tariqa), passaram a utilizar terminologia sufi para veicular suas ideias. Exteriormente, os Imãs apareciam como pirs, chefes de comunidades, ou mestres sufis.

Em Anjudan, no Irã, houve um revigoramento nizari. Posteriormente, surgiu a linhagem dos Aga Khan “senhor e mestre”, terminando a linhagem dos Imãs nizaris nesse país. Devido a um conflito, o I Aga Khan, 47º Imã nizari, Hasan Ali Shah, refugiou-se no Afeganistão e, depois, na Índia, onde os nizaris eram chamados de khojas. O III Aga Khan estabeleceu uma aliança com a Escola Shaykhi, do xiismo dos 12 imãs.

O SUFISMO
O sufismo (Tasawwof) é a via mística do islamismo, o caminho contemplativo. Segundo Corbin, o miraj, a vivência mística na qual o Profeta foi iniciado é o protótipo da experiência que os sufis buscam alcançar[12].  Para eles, miraj não é um movimento exterior, mas um mergulho que o místico ou o gnóstico realiza no interior de sua própria alma, até chegar à essência última de seu ser. Os sufis interpretam o Corão em seu sentido místico, em detrimento da tendência do islamismo sunita de reduzir o islã a uma religião legalista e literal, bastando com o símbolo (as palavras da shariat), sem buscar o simbolizado (os sentidos internos da shariat que revelam as realidades internas da alma).

O sufismo iniciou-se a partir do xiismo, no final do séc. VIII, em Kufa, no Iraque. A via espiritual sufi, a via mística em direção à gnosis, é designada pelo termo “tariqa”, que também designa as confrarias, ou congregações. Muitos filósofos utilizaram o léxico técnico do sufismo sem, contudo, pertencerem a uma congregação sufi (tariqa). Trata-se de um tipo de espiritualidade que combina a ascese espiritual interior e uma educação filosófica rigorosa.

Alguns dos primeiros sufis importantes foram Bistami, Junayd e Hallaj. Bistami (†874) vivia no norte do Irã e era de origem zoroastriana. Desenvolveu o conceito de fana, a unificação com Allah a partir da cessação do eu. Junayd (†911), filho de mandeanos, era iraniano mas ensinou em um centro sufi em Bagdá, no Iraque. Enfatizava a necessidade de filiação do sufi a uma linhagem iniciática legítima (silsilá). Hallaj (857-922) fez parte do centro de Junayd em Bagdá, mas rompeu com o grupo. Enfatizava a união mística. Foi preso e executado em 922.

 O sufismo também floresceu na Espanha, com a escola que Ibn Masarra (883-931) iniciou em Córdoba e que depois foi transferida para Almeria por al-Arif. Almeria passou a ser o foco do sufismo esotérico. No ensinamento de Masarra estavam presentes ideias gnósticas inclusive a gnosis de Prisciliano [13] , herméticas e platônicas. Foram herdeiros de al-Arif Abu Madyan, Ibn Arabi e Hasan al-Shadili. Abu Madyan (1126-1198), que foi chamado de “senhor dos gnósticos”, teve grande influência nos países do norte da África e seus ensinamentos terão continuidade por meio de Shadhili (1196-1258), que atuou na Tunísia, Algéria, Marrocos e Egito. Ao longo dos séculos, essa tradição terá continuidade com Abu Hamid al-Darqawi (1753-1823), que retomou a tradição de Shadili no Marrocos, Argélia; com Hasan al-Madani (†1846) e seu filho, que foi muito atuante na Turquia, impulsionando o movimento pan-islâmico, junto com Jamal al-Afghani (1839-1897); e com Sheikh Ahmad al-Alawi (1869-1934), na Argélia.

Outro personagem bastante importante foi Ibn Arabi (1165-1240), um dos maiores teósofos visionários de todos os tempos, segundo Corbin. Nasceu em Múrcia, na Espanha, e foi discípulo de vários mestres da Andaluzia. A Escola de Almeria teve grande influência em sua formação. Entre 1200 e 1223, percorreu diversas regiões do norte da África e Oriente Médio e fixou-se em Damasco, na Síria, onde passou os últimos 17 anos de sua vida de intenso trabalho. Sua principal obra é O Livro das Conquistas Espirituais de Meca (Kitab al-Fotuhat al-Makkiya), no qual registra revelações divinas que recebeu em Meca, e Gemas da Sabedoria dos Profetas (Fosus al-Hikam), escrito após uma visão em sonho em que o Profeta Mohammad mostrou-lhe um livro cujo título ele anunciava e orientava que ele o ensinasse a seus discípulos. A obra de Ibn Arabi apresenta, ao mesmo tempo, elevada filosofia e experiências místicas vivenciadas. Em seu Diarium Spirituale, relata eventos místicos e ensinamentos recebidos. Foi chamado de “O Platônico”, “Filho de Platão” (Ibn Aflatun), “Vivificador da Religião” (Mohyi’d-Din), “Mestre Supremo” (al-Shaykh al-Akbar). Foi amigo íntimo de Mawlana Jalaloddin Rumi.

Contemporâneos de Ibn Arabi foram Ruzbehan Baqli Shirazi e Najmoddin Kobra. Ruzbehan Shirazi (1128-1209), ao contrário dos sufis anteriores, que opunham o amor humano ao amor divino, considerava que os dois eram um único amor. Não há uma transferência de um objeto humano a um objeto divino, mas a metamorfose do sujeito, de modo que a própria Divindade contempla, por meio do amante, sua própria face eterna, por meio da amada [14]. Najmoddin Kobra (1145-1220) tratou da fisiologia do “homem de luz” e da percepção visionária das cores e sua correspondência com estados do místico e seu progresso espiritual. Aprofundando essa linha, Semnani (1261-1336) inseriu essa fisiologia em um contexto cosmogônico e cosmológico.

No século XIV, Haydar Amoli (1319-1385), sufi ismailita nizari, comentou Fosus, de Ibn Arabi e enfatizou os pontos comuns entre o xiismo e o sufismo.

 
A TEOSOFIA ORIENTAL DE SOHRAVARDI
Henry Corbin considera Yahya Sohravardi (1155-1191) seu grande mestre. Sohravardi nasceu no que hoje é considerado Azerbaijão, onde teve contato pessoal com zoroastrianos e com cristãos nestorianos [15]. Depois foi para Isfahan, no Irã, onde estava viva a tradição aviceniana. Ressuscita a filosofia zoroastriana da antiga Pérsia combinando-a com o platonismo. Uma de suas principais obras é o Livro da Teosofia Oriental (Hikmat al-Ishraq). A palavra “ishraq” designa o esplendor da aurora; luz dessa aurora; fonte e origem dessa luz; Oriente das Inteligências Hierárquicas; Oriente da alma, que se encontra no Ocidente da materialidade; sabedoria oriental que é uma sabedoria divina, termo equivalente a “teosofia”. O termo “ishraqiyun” equivale a platônico ou neoplatônico. Sohravardi e seus discípulos foram chamados “os Platônicos da Pérsia”. Escreveu também Relato do Exílio Ocidental, Vademecum dos Fiéis do Amor, O Arcanjo Tingido de Púrpura. Sua obra procede de experiência pessoal.

Para Sohravardi, uma experiência mística sem formação filosófica prévia corre um grande risco de se perder e de se degenerar, mas uma filosofia que não busca a realização espiritual pessoal é pura vaidade. A história conta que foi condenado à morte, aos 36 anos, por Saladino. Supostamente morreu de modo misterioso em Aleppo, Síria.

A ESCOLA DE ISFAHAN
A Escola de Isfahan, nos séculos XVI e XVII, iniciou-se no Irã com Mir Damad (†1631). Dessa escola participaram Molla Sadra Shirazi († 1666), Molla Mohsen Fayz Kashani, Abdorrazzaq Lahiji, Molla Rajab Tabrizi, Qazi Said Qommi e outros. Mir Damad defendia que a filosofia deveria resultar em realização espiritual, caso contrário, era um esforço inútil. Sem a reunião desses dois aspectos, o filósofo, no sentido verdadeiro da palavra, é incompleto. Nessa época, o xiismo dos 12 imãs tornou-se religião oficial da Pérsia.

Molla Sadra Shirazi, dentre outras obras, escreveu comentários à obra de Avicena; ao Livro da Teosofia Oriental (Hikmat al-Ishraq), de Sohravardi; ao Livro das Fontes, coletânea de ensinamentos dos Imãs; e uma exegese espiritual do Corão. Foi influenciado por Ibn Arabi. Escreveu também As Quatro Viagens Espirituais, resultado de seu trabalho, suas pesquisas e meditações. Chamado pelo governador de Fars, estabeleceu uma escola em Shiraz, onde se ensinava filosofia, astronomia, física, química e matemática. Influenciou a maioria dos pensadores iranianos posteriores. Seus principais discípulos foram Molla Mohsen Fayz Kashani e Abdorrazzaq Lahiji.

 
A ESCOLA SHAYKHI
A Escola Shaykhi iniciou-se com Sheik Ahmad Asa’i (1753-1826), que percebeu que o ensinamento xiita estava sendo distorcido e corrompido e necessitava de uma reforma. Buscava retomar a gnosis xiita dos primeiros Imãs. Ahmad Asa’i nasceu em al-Ahsa, Bahrein, e ensinou no Iraque e no Irã. Sua experiência interior foi favorecida por conversas visionárias com o Profeta e com os Imãs, que lhe transmitiram a gnosis. Relata um ritual de iniciação com Mohammad [16]. Comentou Molla Sadra Shirazi e Mohsen Fayz. Escreveu também sobre alquimia, que ele estabeleceu nos termos de um corpo de ressurreição, muito próximo do que ensinou o neoplatônico Proclo.

Outros personagens importantes da Escola Shaykhi foram Sayed Kazem Reshti, o principal discípulo de Sheik Ahmad Asa’i; Sheik Hajj Mohammad Karim-Khan Kermani e Sheik Mohammad Khan Kermani; Sheik Zaynol-Abidin Khan Kermani, que estabeleceu uma aliança com Aga Khan III, líder do xiismo ismailita. Corbin teve amizade pessoal com Sarkar Agha e aprendeu o shaykhismo durante 20 anos com Ishaq Agha-Zadeh [17]

A CAVALARIA ESPIRITUAL
No livro Temps Cyclique et Gnose Ismaelienne, Henry Corbin afirma que a palavra “javanmardi” (ou fotowwat, em árabe) denomina um modo de vida permeado pelo sentimento de serviço cavaleiresco (com ritual, iniciações, graus, pacto de fraternidade, sigilo, etc.). Ele denomina também a luz que emana do mundo espiritual, o domínio da luz da natureza primordial do homem sobre as tendências da natureza instintiva.

Javanmard designa também aquele em quem se realizam as perfeições humanas e as energias espirituais, as forças interiores da alma, aquele que possui qualidades e hábitos exemplares.

A iniciação à linhagem da fotowwat (javanmardi) implicava um “ritual da taça”, com água, instituído pelo próprio Profeta Mohammad e transmitido ao Imã Ali [18]. O polo da fotowwat foi o I Imã, Ali, e o selo será o XII Imã, Mohammad al-‘Qaim, o Imã desejado, ao mesmo tempo presente e invisível aos olhos dos homens.

Para o xiita, o ciclo da walayat, como ciclo de iniciação espiritual, é o ciclo da fotowwat. O cavaleiro por excelência é o Imã. Esses teósofos procuram manter viva nos seres a memória de seu ser preexistencial.

Segundo Corbin, essa cavalaria do Islã pode ser comparada à cavalaria dos templários [19].

A ALQUIMIA
A operação alquímica trata da transmutação da alma, que condicionará a transmutação dos corpos. Henry Corbin afirma que há um elo essencial entre ideia alquímica e imamologia xiita e entre a obra alquímica e a fotowwat, como serviço de cavalaria espiritual. Ainda segundo Corbin, o I Imã, Ali ibin Abu Talib, disse que a alquimia é a “irmã da profecia” e que os profetas a conheciam.

Corbin traduziu e comentou a obra de alguns alquimistas importantes, como Geber e Aydamor Jaldaki.

O VI Imã, Jafar al-Sadiq teve como um de seus discípulos Jabir ibn Hayyan, ou Geber, em latim. Geber desenvolveu a chamada Ciência da Balança, que procurava descobrir a relação existente em cada corpo entre o manifesto e o oculto (zahir e batin).

Aydamor Jaldaki, no séc. XIV, escreveu o Livro da Demonstração Relativa aos Segredos da Ciência da Balança, que trata da transmutação espiritual simbolizada pela operação alquímica. Nesse livro, celebra-se a união de Hermes e sua Natureza Perfeita. Segundo Henry Corbin, em L’Homme de Lumière dans le Soufisme Iranien, Hermes tipifica o “homem de luz”, a alma humana em queda neste mundo que readquiriu a sua pureza original, e a Natureza Perfeita tipifica o Nous, a raiz luminosa da alma, que revela a ela os mistérios da gnosis e a resgata do poço das trevas arimanianas ou materiais, onde se encontra cativa. Jaldaki também comentou O Livro das Sete Estátuas, de Apolônio de Tyana.

 
[1] Utilizaremos a forma Profeta Mohammad, pois a forma mais utilizada em português, Maomé, em sua origem, era um termo pejorativo.
[2] Segundo Pedro, o Venerável, abade de Cluny que viveu no século XII e escreveu tratados sobre o islamismo.
[3] YATES, A. Frances, Giordano Bruno e a tradição hermética, São Paulo, ed. Cultrix, 1995, p. 62.
[4] TISDALL, W. S. C.T. The Original Sources of the Qur’an, ed. Society for Promoting Christian Knowledge, Londres, 1911, reedição de 1905, p.171. Disponível em https://archive.org/details/theoriginalsourc00tisduoft.(Acesso em janeiro de 2017.)
[5] CORBIN, Histoire de la philosophie islamique, França, ed. Gallimard, 1986, pp. 28-29.
[6] Idem, p. 29 ss.
[7] Esse tema foi tratado também em CORBIN, Henry, En islam iranien, vol I, França, ed. Gallimard.
[8] DAFTARY, F. The ismailis, their history and doctrines, ed. Cambridge University Press; DAFTARY, F., HIRJI, Z. The ismailis, na illustrated history, ed. Azimuth em associação com The Institute of Ismaili Studies; CORBIN, H. Temps cyclique et gnose ismaélienne, ed. Berg International Editeurs.
[9] CORBIN, Henry, L’Iran et la philosophie, ed. Gayard, p.190.
[10] Idem, pp. 186-217.
[11] HITTI, Philip K. The Origins of the Druze People and Religion, ed. Saqi, 2007.
[12] CORBIN, Henry, En islam iranien, vol. III,  França, ed. Gallimard, pp. 225-226.
[13] CORBIN, Henry, Histoire de la philosofie islamique, França, ed. Gallimard,  p. 307 .
[14] Idem, p. 393.
[15] CORBIN, Henry, Philosophie iranienne et philosophie comparée, ed. Académie Impériale Iranienne de Philosophie, Teerã, 1977, p.88.
[16] MacEOIN, D. M., Ahsai, Shaikh Ahmad, Encyclopædia Iranica, I/7, pp. 674-679. Uma versão atualizada está disponível em http://www.iranicaonline.org/articles/ahsai-shaikh-ahmad (Acessado em 19/08/2016).
[17] CORBIN, Henry, En islam iranien, vol IV, França, ed. Gallimard, p. 205
[18] CORBIN, Henry, L’Iran et la philosophie, ed. Gayard, p. 186.

[19] Idem, p. 186.